Ação Griô Nacional busca criar uma política nacional de educação que garanta o ensino das tradições orais e da cultura popular brasileira

Poderia ser uma escola pública como outra qualquer. Porém, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, que fica no bairro do Butantã, zona oeste de São Paulo (SP), traz algo diferente em sua forma de educar as crianças. Entre as disciplinas do currículo escolar, os alunos têm um tempo reservado para o aprendizado da cultura popular brasileira, através de manifestações da tradição oral.

Este trabalho é realizado pelo Ponto de Cultura Amorim Rima e Centro de Estudos e Aplicação da Capoeira (Ceaca), que atua dentro da escola. Comandado por Alcides Lima, o ponto de cultura atende cerca de 300 crianças de 1ª a 4ª série.

Mestre Alcides, como é conhecido, conta que o trabalho começou por oficinas de capoeira fora do período escolar no ano 2000. E se consolidou quando, em 2005, o grupo passou a ser ponto de cultura, através de um edital do Ministério da Cultura (MinC).

O mestre explica que as aulas sobre a cultura popular ministradas pelo ponto de cultura fogem dos padrões do ensino formal das escolas brasileiras. A oralidade, segundo ele, trata-se de repetição. Assim, nas aulas, as crianças aprendem através da repetição de histórias, cantos, contos, poesias, entre outras manifestações artísticas. Primeiro, aprende-se o que é determinada tradição, trabalhando a parte gestual dela, como dança, música ou teatro. Depois, o aluno estuda sobre a sua origem e todo o contexto que a envolve. “A gente vai dando à criança essa questão da oralidade. Ah, de onde vem o coco? De Pernambuco. E onde fica Pernambuco? Fica no Nordeste. O que é ciranda, cordel? Que linguagem é essa? Como surgiu? Por que surgiu?”, exemplifica Alcides. Desta forma, o ensino da tradição oral complementa a educação formal. Atualmente, o ponto de cultura trabalha além da capoeira, com coco, ciranda, puxada de rede, maculelê e samba de roda.

Ação Griô
O trabalho desenvolvido no Ponto de Cultura Amorim Rima não é único. Ele faz parte da Ação Griô Nacional, uma rede que integra 130 pontos de cultura em todo o país e que, através de seus mestres, busca fortalecer a identidade cultural de crianças e adolescentes, segundo a tradição de cada comunidade.

O objetivo da Ação é criar uma política nacional de educação que garanta o ensino das tradições orais e da cultura popular brasileira. “É uma mudança do currículo, da prática pedagógica da escola com esse novo olhar e com essa nova geração que se cria com os saberes e com os griôs e mestres”, explica Lílian Pacheco, educadora e coordenadora da Ação Griô Nacional.

A rede nasceu a partir do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, em Lençóis (BA), do qual Pacheco é coordenadora pedagógica, e hoje é formada por cerca de 750 mestres e griôs aprendizes.

A educadora conta que a Ação Nacional começou quando, com a formação dos pontos de cultura em 2005, o então secretário de Cidadania Cultural do MinC, Célio Turino, se interessou pelo projeto do Grãos de Luz e Griô, que já trabalhava com a oralidade, e decidiu estender a ação para todo o país.

Com isso, os pontos que já realizavam trabalho semelhante passaram a integrar a ação. “Uma coisa que a gente fala, não só eu, mas todos da tradição oral, é que a gente não começou com a Ação Griô, com o Ministério da Cultura. A gente lida com isso há muitos anos”, explica Alcides.

Reconhecimento
Para ser um mestre griô é necessário ser reconhecido por sua comunidade como detentor do conhecimento das tradições orais. Além dos mestres, existem os griôs aprendizes, que são educadores que trabalham com o ensino da cultura popular.

A palavra griô vem de griot, em francês. A palavra tem sua origem em bamanan, língua do noroeste da África, antigo império do Mali, e significa “o sangue que circula”. Assim como o significado da palavra, são reconhecidos como griôs aqueles que fazem com que as tradições circulem entre as novas gerações, preservando a identidade cultural de cada povo.

Lílian Pacheco aponta que a Ação Griô traz o reconhecimento dessas pessoas que guardam os saberes e tradições de cada comunidade. “O mestre griô daquela comunidade passa a ter um outro lugar social, político, econômico e educacional”, relata.

A griô aprendiz Catarina Ribeiro, do Ponto de Cultura A Bruxa Tá Solta, situado em Rorainópolis (RR), diz que nas comunidades em que a Ação Griô atua, percebe-se um olhar atencioso para os mais velhos. “Hoje temos jovens que falam que a melhor coisa no convívio com os mestres é a permanente prática de cooperação e solidariedade”, afirma.

Com isso, os mestres ganham visibilidade e começam a ser reconhecidos em seus locais de origem. “Para nós, do Ponto, eles são os nossos guardiões, fonte em que buscamos a renovação das forças e a alegria para caminhar. E os saberes da tradição oral são o ativo estratégico para continuarmos a riqueza da diversidade cultural brasileira”, conta a griô aprendiz, responsável pela coordenação da Regional Amazônia da rede.

Identidade cultural
Segundo Lílian Pacheco, esse reconhecimento contribui para o resultado que se espera obter através da educação das tradições orais, que é “o fortalecimento da identidade das crianças e dos adolescentes, a ancestralidade da criança e do adolescente de cada comunidade”.

A educadora afirma que, com o trabalho realizado pela Ação Griô, as crianças passam a reconhecer a sua etnia, sua descendência e a história de seu povo. No mesmo sentido, os educadores passam a tratar as ciências que são ensinadas nas escolas com um olhar mais contextualizado dentro do universo dos saberes, enriquecendo o aprendizado. “A ciência que tem o pescador daquela comunidade passa a ser integrada na ciência que está sendo estudada na escola”, exemplifica.

Pacheco, através das experiências vividas em seu ponto de cultura na cidade de Lençóis, reuniu todas as atividades e práticas realizadas e formulou a Pedagogia Griô. No entanto, segundo ela, cada ponto de cultura acaba criando o seu próprio modo de ensino através da oralidade, de acordo com o contexto cultural local.

No caso do Ponto de Cultura Amorim Rima, em São Paulo, Mestre Alcides conta que a capoeira é trabalhada como “uma possibilidade humana de educação”. Ele explica que através dela é possível agregar valores às crianças. “Porque dentro da capoeira tem toda uma questão de resgate de valores, como o respeito, o reconhecimento, entender porque as pessoas não são iguais, que cada um tem a sua dificuldade, que um complementa o outro. A gente trabalha isso”, descreve.

Outro exemplo pode ser dado através da experiência realizada no Ponto de Cultura Nina Griô, que fica em Campinas (SP). Marcos Alberto Simplício, o mestre Marquinhos, relata que um dos trabalhos realizados por seu ponto de cultura é a Roda do Conhecimento, uma reunião mensal de troca de saberes através da oralidade, onde crianças e adolescentes ouvem pessoas envolvidas no universo da cultura popular contarem suas histórias e experiências de vida. Segundo ele, esta é uma “pedagogia que valoriza o poder da palavra e fortalece os processos de formação de identidades locais”.

Para Catarina Ribeiro, “garantir o cuidado e a rede de transmissão oral é garantir a brasilidade que nos diferencia e nos aproxima dos demais povos”

Michelle Amaral
da Reportagem